O tratamento da questão feminina por parte do PCP. Os 1º e 2º Congressos Ilegais (1943, 1946). Das resoluções teóricas à prática
«O Congresso constata que, apesar da crescente participação
activa das mulheres trabalhadoras portuguesas nas
lutas da classe operária, do campesinato e das massas
trabalhadoras em geral, não se tem notado um
correspondente progresso na organização das mulheres
trabalhadoras.» (1)
A situação dramática vivida em Portugal nos primeiros anos da década de 40, motivada por uma grave crise nas subsistências, terá, como uma das suas principais consequências, a participação massiva das mulheres, nas greves e marchas de fome que à época varreram o país, e que tinham como principais consignas, a demanda pelo pão e demais géneros alimentícios que escasseavam no mercado.
Os artigos publicados no Avante!, muitas vezes sob a designação de “Tribuna Feminina”, ou seja, redigidos tendo como público alvo as mulheres, apresentam como principais reivindicações a luta pelos géneros e por melhores salários. Como é repetido em mais de um artigo, «Hoje todas as mulheres parecem ser más donas de casa, pois para nada lhes chega a jorna dos companheiros.» (2). Caberia às mulheres «tratar do governo da casa», sendo elas, por isso, as mais duramente atingidas pelos preços praticados. Como tal, «É às mulheres que compete organizar a luta contra a carestia da vida, protestando contra o aumento dos preços e incitando os companheiros a lutarem pelo aumento dos salários.» (3). Assim, deveriam as mulheres «(…) convencer os nossos companheiros da necessidade que há em lutarem todos juntos pelo aumento dos salários (…).» (4). Às mulheres “mais conscientes”, por outro lado, caberia a função de explicar às restantes as causas para a inexistência de géneros, incitando-as também para a luta. Assim, a mulher trabalhadora deveria «(…) conduzir uma luta enérgica e decidida», devendo também «(…) conquistar e mobilizar para a sua causa os irmãos, companheiros, pais, filhos, levá-los a lutar decididamente a seu lado pela causa que é também deles.» (5).
No I Congresso Ilegal, embora se reconheça a participação massiva feminina nos surtos grevistas até então verificados, embora se reconheça a necessidade de proceder à organização das «(…) mulheres trabalhadoras, em formas maleáveis de organização (…)» (6), bem como a necessidade de «(…) criar organização partidária nas fábricas onde a maioria dos trabalhadores são mulheres» (7), e ainda a necessidade de criar «(…) organizações femininas legais à escala nacional, assim como o desenvolvimento da actividade dentro das já existentes» (8), a verdade é que, na prática, pouco seria feito, como seria reconhecido no seio do PCP, já durante o II Congresso Ilegal (1946), onde se concluiria que «Uma das causas fundamentais do atraso da organização das mulheres reside nos preconceitos burgueses de superioridade do sexo forte que penetram nas próprias classes trabalhadoras e nas próprias fileiras do Partido. Esta situação exige um persistente trabalho de educação política do Partido.» (9).
De facto, embora se sublinhe que «A participação activa das mulheres na luta fortalece e estimula a vontade de lutar nos trabalhadores, empresta à luta um carácter mais decidido, mais firme» (10), quando se trata de inseri-las na luta organizada, em organizações partidárias, a situação altera-se, embatendo com dificuldades levantadas pelos preconceitos dos militantes masculinos. Como é mencionado: «Este facto deve-se não só à incompreensão daqueles militantes que negam a capacidade de luta e de organização das mulheres, mas ainda à forma errada como outros militantes as abordam.» (11). A negação da capacidade de luta das mulheres não era mais, afinal, do que um reflexo do mau trabalho partidário desenvolvido pelos militantes comunistas. Como pode ler-se: «(…) estes camaradas procuram esconder a sua incapacidade e debilidade de trabalho, neste aspecto. Isto quer dizer que estes camaradas continuam a adoptar métodos de trabalho rotineiros, são fechados e sectários no trabalho, não sabem encontrar as formas justas capazes de unir e mobilizar as mulheres.» (12). As mulheres deviam, portanto, ser chamadas à luta através de formas legais, indo «(…) de encontro às suas aspirações e defendendo as suas reivindicações.» (13). E muito embora fosse um erro «(…) ver o problema da mulher trabalhadora desligado da luta geral dos trabalhadores, ou querer solucioná-lo em separado, desligado da solução geral dos problemas da sua classe»(14), reconhece-se que as mulheres viviam em condições de maior desigualdade e exploração, quando comparando com os homens(15).
Apresenta-se como dificuldades para o trabalho de organização partidária das mulheres «O atraso político, os preconceitos de educação» (16), que invalidaria, em muitos casos, a integração das mulheres em células do Partido. Desta situação, resultaria a necessidade de «(…) procurar formas simples de organização das mulheres que se destaquem na luta, de acordo com a sua condição» (17), por exemplo, em Comissões de Unidade que se criassem nas fábricas tendo em vista apresentar determinados cadernos reivindicativos, bem como em Comissões Sindicais.
Nas Resoluções saídas do II Congresso Ilegal, defende-se a necessidade das mulheres integrarem organizações pré-existentes, mistas, onde participassem homens e mulheres, ou então de organismos femininos nas fábricas onde a mão-de-obra fosse essencialmente feminina, valorizando-se, uma vez mais, a questão das organizações femininas legais (18). Embora a questão da mobilização das mulheres mereça, em 1946, uma atenção superior à verificada em 1943, o que aliás será amplamente discutido no 3 Páginas (19), esta situação apenas demonstra a discrepância entre o discurso teórico produzido com a prática na realidade verificada, situação que, aliás, irá manter-se nos anos seguintes. Assim, em 1950, reconhecia-se que «Uma das fraquezas do nosso Partido continua a ser o trabalho entre as mulheres, a sua mobilização para as lutas reivindicativas e o recrutamento de novas aderentes e simpatizantes. Embora tenha melhorado nalguns aspectos, o trabalho deste sector continua a ter a origem da sua principal deficiência na pouca importância que os nossos camaradas, mesmo os mais responsáveis, dão a este sector do trabalho partidário.» (20)
Verifica-se, portanto, que mesmo no seio do PCP era difícil combater as ideias hegemónicas exteriores à organização, valores importados da sociedade salazarista, patriarcal, de então. Como será reconhecido por Álvaro Cunhal no II Congresso Ilegal, «A razão fundamental deste atraso reside, quanto a nós, na concepção ainda dominante entre os nossos camaradas de que as mulheres são seres inferiores ao homem. É duro dizer-se que esta concepção existe na cabeça de comunistas, nas fileiras do nosso Partido, mas assim é, camaradas. E isto não nos deve surpreender nem chocar em demasia. Pesa sobre o nosso povo uma tradição e uma educação tendentes a afastar a mulher da vida social e política e a condená-la aos tachos, aos filhos e à Igreja. Toda a vida na sociedade presente está organizada de forma a fazer da mulher uma escrava. Daí, pesarem ainda essa tradição e essa educação nos nossos próprios camaradas, nas nossas próprias fileiras.» (21).
Notas
(1) Cf. Legião Portuguesa, Boletim de Informação (actividades comunistas) – Resoluções dos Congressos do PCP, suplemento nº 2, Lisboa, Direcção dos Serviços Culturais da Junta Central, 1956, pp. 25-26.
(2) Cf. Maria Rosa, «Tribuna Feminina – A mulher operária e a carestia da vida», Avante!, VI Série, nº 5, Dezembro de 1941, p. 6; Maria Rosa, «Tribuna Feminina», Avante!, VI Série, nº 10, Maio de 1942, p. 7. É provável que o nome de Maria Rosa fosse inventado ou então um pseudónimo, sendo ainda de considerar ter sido escrito por um homem.
(3) Maria Rosa, «Tribuna Feminina – A mulher operária e a carestia da vida», Avante!, VI Série, nº 5, Dezembro de 1941, p. 6.
(4) Idem.
(5) «A situação da mulher operária», Avante!, VI Série, nº 24, 1ª Quinzena de Janeiro de 1943, p. 2.
(6) Legião Portuguesa, Boletim de Informação (actividades comunistas) – Resoluções dos Congressos do PCP, suplemento nº 2, Lisboa, Direcção dos Serviços Culturais da Junta Central, 1956, p. 26. Segundo Álvaro Cunhal, «Devemos ter em conta as dificuldades com que tropeçam muitas das nossas camaradas, sobretudo em meios pequenos. As resistências dos seus maridos, dos seus pais, dos seus namorados, bem como os ditos e mexericos das suas vizinhas e amigas. Vários exemplos mostram-nos, entretanto, que a boa vontade e a habilidade das nossas camaradas conseguem vencer essas resistências. Além disso, tendo-as nós em conta, saberemos encontrar as formas apropriadas de resolver o problema do controle, nos casos em que ele se torna particularmente difícil.» Cit. in José Pacheco Pereira, Álvaro Cunhal – Uma Biografia Política. «Duarte», o Dirigente Clandestino (1941-1949), vol. 2, Lisboa, Temas e Debates¸2001, p. 634.
(7) Legião Portuguesa, Ob. Cit., p. 26.
(8) Idem, p. 26.
(9) Idem, p. 52.
(10) «Mobilizemos as Mulheres», O Militante, nº 21, Julho de 1943, p. 3.
(11) «Mobilizemos as Mulheres», O Militante, nº 33, Novembro de 1944, p. 5.
(12) Idem.
(13) Idem.
(14) «A participação das mulheres nas Comissões de Unidade», O Militante, nº 36, Fevereiro de 1945,p.5.
(15) No mesmo artigo pode ler-se: «A mulher trabalhadora, participando ao lado do homem na produção e no trabalho, é vítima duma maior exploração. Realizando muitas vezes um trabalho igual ao do homem, recebe salários muito inferiores, e está sujeita, pela sua condição de mulher, a constantes humilhações e perseguições, não só pelos patrões como pelos encarregados ou chefes.» Cf. «A participação das mulheres nas Comissões de Unidade», O Militante, nº 36, Fevereiro de 1945, p. 5.
(16) Idem.
(17) Idem.
(18) «4 – A organização das mulheres dentro do Partido não deve obedecer à ideia da criação de um esquema de organização feminina do topo à base, ao lado ou à parte da “organização masculina” do Partido. A orientação geral que deve guiar o nosso trabalho de organização é que as mulheres que vêm ao Partido devem ser enquadradas nas organizações partidárias do respectivo sector, ao lado dos seus camaradas. Aconselha-se assim, o desenvolvimento das células mistas (com homens e mulheres) bem como um intenso auxílio político às camaradas no sentido de promover audaciosamente a participar em todos os organismos de direcção do Partido (secretariado de célula, comités locais, comités regionais, etc.)
5 – Devem ter-se, entretanto, em conta as dificuldades criadas às mulheres pela sociedade capitalista e pela sua moral. É necessário ajudar as nossas camaradas a encontrar as formas de ultrapassar estas dificuldades, e encontrar mesmo formas maleáveis de organização (controle, reuniões, ligações, etc).
6 – Ainda que a orientação geral deva ser a de formação de células mistas em muitos casos é de aconselhar a formação de organismos compostos exclusivamente por mulheres (…). Mas o controle dessas organizações deve ser feito pelos organismos partidários dirigentes do sector.» Cf. Legião Portuguesa, Boletim de Informação (actividades comunistas) – Resoluções dos Congressos do PCP, suplemento nº 2, Lisboa, Direcção dos Serviços Culturais da Junta Central, 1956, p. 52.
(19) Num artigo de opinião sobre as diferenças das Resoluções dos Congressos quanto à organização das mulheres, a companheira Joaquina comentava: «Segundo penso os 4 pontos das Resoluções do I Congresso foram consequência da participação massiva, inesperada e grandiosa das mulheres nas greves de Julho-Agosto. A grandeza da participação obrigou o Partido a reparar que a vontade feminina de luta era um facto, mas o inesperado do acontecimento não deixou que sobre ele se resolvesse mais e melhor no I Congresso. Essas Resoluções favoreciam, a meu ver, o sectarismo feminista e impediam a colaboração tão necessária na luta entre os homens e as mulheres. Nós para o I Congresso fomos uma coisa à parte. Mas passando às Resoluções actuais: Penso que, como as anteriores, foram consequência das lutas femininas. (…) o Congresso já não constata e assinala, somente, o aparecimento de mais uma força na luta, mas, familiarizado com essa força, observa e resolve sobre ela coisas justas e adequadas. (…). Mas de todas as Resoluções aquela que me pareceu mais importante e mais justa; aquela que a meu ver reabilita o Partido das Resoluções do I Congresso, é a quarta que determina que “as mulheres devem ser enquadradas nas organizações partidárias do respectivo sector”. Isto é uma afirmação concreta e quer dizer: as mulheres valem porque lutam e portanto têm direitos iguais aos dos seus companheiros. Considero que só agora com esta Resolução, o Partido abriu de facto as suas portas a estas pobres de Cristo que estavam cansadas de bater. Mas, sejamos justos, também só agora o barulho que fizeram foi suficiente para ser ouvido. Agora pode a mulher comunista trabalhar conscientemente sem perigo de cair em qualquer dos seguintes extremos, como até aqui frequentemente acontecia: ou se tornavam exageradamente feministas considerando-se superiores aos seus camaradas, não querendo aceitar deles o menor auxílio, prejudicando o seu trabalho para não quebrar a “dignidade feminista”, ou perante o isolamento a que eram votadas reagiam ao contrário das primeiras e criavam um complexo de inferioridade perante os seus camaradas.» Cf. «O 2º Congresso e a Organização das Mulheres», 3 Páginas, nº 9, Janeiro de 1947, pp. 1-2.
(20) «Intensifiquemos o trabalho feminino», O Militante, nº 61, Setembro de 1950, p. 5.
(21) Cit. in “Paiva”, «Saibamos mobilizar as mulheres para a luta», O Militante, nº 74, Fevereiro de 1954.