J. M. Leal da Silva – FOTOS DA GREVE DE 1943 (Excerto)
A primeira (e a mais conhecida) fotografia da “Greve de 1943”

(…)
2.1. Sem dúvida que a fotografia da Fig. 1 é a mais significativa e a mais divulgada, pelas razões já referidas.

Fig. 1

Tem um lugar garantido na História de Portugal no sec. XX e até da história dos conflitos laborais europeus e merece, por isso, todos os encómios. Por idêntica razão também deveria merecer uma maior atenção e respeito. A sua referência de origem atribui-lhe uma data (28/7/43) e uma legenda (“A polícia obrigando as famílias dos operários grevistas a abandonar as imediações das fábricas.”). Nesta, nenhuma referência ao Barreiro! Veja-se agora, sem a preocupação de esgotar o tema, pois existem certamente outras reproduções ou utilizações da mesma fotografia que escaparam a esta listagem, como o mesmo documento vai ser apresentado num conjunto de fontes que se reputa significativo e que sucessivamente a vão reproduzir desde a sua primeira divulgação pública, posterior a 1974:

(a) Na publicação 60 Anos ao Serviço do Povo e da Pátria, da Editora Avante, Lisboa, 1981, pag. 65, está referenciada como “Barreiro, Julho de 1943: a polícia expulsa das fábricas as mulheres dos operários em greve”.

(b) Em FERNANDO ROSAS, O Estado Novo (1926-1974) , 7º Volume da História de Portugal publicada sob a direcção de JOSÉ MATTOSO, Círculo de Leitores, s.l., 1994, pag 356, a legenda é a seguinte: “Forças da GNR dispersando uma concentração das mulheres dos operários grevistas do Barreiro em Julho de 1943. Fonte: Fototeca Palácio Foz, Arquivo O Século”. Ao Autor não é indiferente o comportamento revolucionário das mulheres de Alcântara, pelo que, na pag. 358 da obra citada, transcreve parcialmente o parágrafo da reportagem de “O Século” que atrás (ponto 1.5) se referiu.

(c) Em ARMANDO SOUSA TEIXEIRA, A Fábrica e a Luta em Construção – Barreiro: Uma História de Trabalho Resistência e Luta – Parte II – 1946 / 62, edições Avante, Lisboa, 1999, a Fig. 1 está reproduzida na parte superior da contracapa e é identificada, na pag. 6 da obra, como: “Repressão sobre mulheres corticeiras em greve”. Não referindo directamente o Barreiro, esta legenda induz essa localização, quer através do objecto geral da própria obra, quer pela referência a “mulheres corticeiras”, certamente uma hipótese de trabalho que resulta do desenrolar da greve de 1943 no Barreiro, mas que não encontra qualquer conforto por parte da fonte original.

(d) Em JOÃO CARLOS OLIVEIRA, Movimento Operário Durante a II Guerra Mundial – Luta e Repressão no Barreiro, História (Nova Série), XXI, 18 (Outubro 1999), pp. 58 a 66, é dada a pag. 62 com a legenda “Famílias de operários grevistas são obrigadas pela polícia a retirar das imediações das fábricas da CUF”, que praticamente reproduz a legenda original, apenas resultando induzida a referência ao Barreiro pelo título do próprio artigo. Saliente-se que, para além de uma cuidada análise das greves de 1942, 1943 e 1944, obviamente dentro dos limites de extensão do próprio artigo (mas que o Autor tem recentemente desenvolvido numa série de oportunos textos em publicação no Jornal do Barreiro) esta fonte é a única que reproduz a fotografia da Fig. 1 sem a recortar na sua parte superior – o que, como se verá, tem alguma importância. Este artigo tem ainda a particularidade assinalável de ser, a conhecimento do signatário desta resenha, a primeira fonte a reproduzir todas as restantes fotografias relativas à CUF (Figs. 2, 3 e 4), com adequada menção da sua origem.

(e) Em JOAQUIM VIEIRA, Portugal Século XX – Crónica em Imagens – 1940-1950 (5º volume), pag 170, é apresentada como “As forças de segurança expulsam familiares de grevistas das imediações de fábricas da CUF, no Barreiro, ocupadas e paralizadas pelos seus operários.”, identificando-lhe a origem (bem como das outras fotografias próximas) na pag. 215 do mesmo volume. Deve aliás registar-se que na pag. 240 do último volume da série (o 10º), publicado já em 2001, a “corrigenda da 1ª edição” se lhe refere mencionando: “Pag: 170 / Coluna: Legenda inferior / Onde se lê: no Barreiro / Deve ler-se : em Alcântara (Lisboa)”.

(f) Num comentário anónimo publicado a pag. 3 do Jornal do Barreiro, de 25/8/2000, sob o título interrogador Afinal onde foi?, dá-se conta, reproduzindo-a, de que a mesma fotografia foi encontrada, no painel “Repressão nas Ruas” duma exposição sobre repressão e perseguição política então patente no Forte de Peniche, com a surpreendente legenda: “Agressões protagonizadas pela GNR sobre transeuntes na Marinha Grande. Década 30”. E o anónimo comentador conclui, com razão abundante: “Essa mesma fotografia tem sido divulgada como “repressão da GNR, no Barreiro, nos anos 40”. Afinal onde foi? Que se apure a verdade. A palavra aos historiadores.” Este repto, que revela o interesse existente quanto à questão, deu lugar a uma oportuna resposta por parte de FERNANDO ALEGRIA DA MOTA, como leitor do Jornal do Barreiro, resposta essa que, pelo seu interesse, adiante se retomará.

(g) Ainda mais recentemente, no capítulo 6º (A viragem da guerra: as greves) da obra de JOSÉ PACHECO PEREIRA, Alvaro Cunhal – Uma Biografia Política; Volume 2: «Duarte»., o Dirigente Clandestino (1941-1949), ed. Temas e Debates, Lisboa, 2001, a legenda que lhe vem aposta, na pag 260, é “GNR carrega sobre as mulheres no Barreiro”. Ao Autor não passa despercebido o valor intrínseco do documento, que lhe merece a seguinte análise, a pags. 259/260: “Data provavelmente desse dia a mais conhecida fotografia da greve e talvez a mais expressiva de qualquer movimento social operário durante a ditadura, na qual se vê um grupo de GNR a carregar sobre mulheres e crianças no Barreiro. As mulheres ainda jovens, de avental e com a chita dos vestidos dos pobres, olham para trás para o guarda que levanta a espingarda para dar uma coronhada, sem qualquer medo. A mulher da frente leva na mão um filho e quase não corre, anda apenas mais depressa.”. Ainda na mesma obra são reproduzidas as outras três fotografias de “O Século” que à greve e aos dias 28 e 29 de Julho de 1943 se referem, sem mais indicações que as legendas respectivas, e volta a ser parcialmente transcrita, no texto, a referência, já acima citada (ponto 1.5.) da reportagem do mesmo jornal quanto à intervenção activa das mulheres de Lisboa.

(h) Finalmente, e como uma das razões já invocadas para a oportunidade destas linhas, a já tão celebrada fotografia da Fig. 1 é reportada a 1943 na série cronológica constante da exposição “Elementos do Passado Industrial Barreirense”, que, em Maio último, a Câmara Municipal do Barreiro inaugurou nas Reservas Museológicas Visitáveis, tendo aí a seguinte legenda: “Agressões da GNR sobre familiares dos grevistas da CUF”, e registando como fonte imediata a publicação referenciada em (a), supra. Ainda que esta legenda não o mencione, a natureza da exposição e o reporte referido àquela referência antecedente, sem qualquer salvaguarda quanto ao local, volta a induzir o Barreiro como localização. Aliás, como se verá, a identificação como GNR da força repressora que a fotografia exibe havia já sido posta em causa, quando desta mostra. A própria divulgação desta interessante exposição na imprensa diária vai determinar a mais recente publicação que se conhece da mesma fotografia, com muito má qualidade e com uma legenda que se situa apenas no contexto da exposição e não no que o documento significa, a pag. 10 da edição de Lisboa do “Jornal de Notícias” de 18 de Maio de 2002.

2.2. Apresentada a fotografia da Fig. 1, tal como tem sido até hoje divulgada, afasta-se liminarmente a suposta localização na Marinha Grande e nos “anos 30”, que revela uma lamentável falta de rigor e um total desconformidade com a sua origem. Tem-se por assente que a fotografia respeita à greve de 1943 e que se reporta a instalações da CUF, mas muito do que se encontra nas variadas legendas que lhe foram atribuídas e que atrás se referiram, incluindo a alusão a uma localização que se tornou tradicional (Barreiro), carece de apoio na fonte original.

2.3. Começa-se por questionar a identificação da força repressora, quase geralmente apontada como sendo a GNR. Cabe tal mérito e prioridade ao já referido leitor do JB, FERNANDO ALEGRIA DA MOTA, quando, respondendo ao repto “Afinal onde foi?” lançado na edição deste jornal, de 25/8/2000, levantou certeiramente a questão em carta-resposta publicada na edição do mesmo, de 8/9/2000, pag. 4, e da qual, com a devida vénia, se destaca o contributo seguinte: “A foto sempre foi apresentada em muitas publicações como sendo do Barreiro.Não é facilmente decifrável o local onde foi feita, embora a roupagem das mulheres e crianças, bem como o ambiente envolvente, tenha muito mais do Barreiro do que da Marinha Grande. A ser no Barreiro, a foto deve ter sido feita nos anos 40, julgo mais certo 42 ou 45, aquando das grandes greves que então aqui se registaram. Mais interessante é que a carga das forças policiais é atribuída à GNR quando são agentes da PSP que estão a actuar, força que então policiava o Barreiro só tendo sido substituída pela GNR depois destas greves. É fácil reparar nas diferenças: A GNR usava polainas. A PSP usava calça completa. Os bonés, embora semelhantes, não são iguais. O fecho dos cinturões é diferente, tendo a GNR, ainda hoje, um escudo próprio. No que respeita ao armamento exibido, ambas [as] forças policiais usavam o mesmo modelo, ao que presumo Mauser mod. 37 ou a Mauser Vergueiro. Ainda devem existir pessoas vivas que tenham presenciado os acontecimentos e que possam esclarecer devidamente a foto.” [tem-se que a referência a 45 foi gralha ou má leitura, e que o referido leitor talvez quizesse escrever 43]. Ou seja: se são importantes as dúvidas deste leitor quanto à localização, é também certeiro o reconhecimento, pela farda, de que as forças repressoras então fotografadas são da PSP e não da GNR, estendendo-se os argumentos de identificação às restantes fotografias da série. Porém, sendo importante para marcar leituras incorrectas nas sucessivas apresentações dessas fotos, já que as legendas originais não referem a GNR, tal argumento não fornece, só por si, um critério decisivo quanto à localização. De facto, o policiamento do Barreiro urbano era até então “titulado” pela PSP e assim, muito embora tenham acorrido ao Barreiro efectivos da GNR para integrar as forças da repressão (e vieram para ficar, como se viu e sentiu…), os acontecimentos representados com presença da PSP poder-se-iam desenvolver tanto no Barreiro urbano como em Lisboa. Tempos depois, com a entrega de todo o Barreiro à acção da GNR destacada, já não se diria certamente o mesmo…

2.5. Aprofundando a indagação, percorreu-se atentamente o campo fotografado na Fig.1, inclusive para tentar identificar onde, no Barreiro, teria tido lugar o acontecimento registado. Não se tendo conseguido respostas satisfatórias, a atenção fixou-se em dois elementos que a fotografia apresenta: o poste metálico cilíndrico que se evidencia junto à esquina, e o candeeiro de ferro fundido, com um globo de vidro de desenho característico, que se desenha no fundo, “do outro lado da rua em frente”. Quanto ao primeiro, a identificação pode ser facilitada quando o desenvolvimento vertical do mesmo se observa na fotografia sem recorte superior, como consta da reprodução publicada no artigo de JOÃO CARLOS OLIVEIRA e aqui se retoma. É o que também ressalta da ampliação do canto superior direito da fotografia, que se dá como Fig.1-1. E assim não só se confirma ser aquele um poste metálico cilíndrico, como facilmente se reconhecem os troços de diferente secção, da base para o topo, que o identificam com os que a Carris então usava e ainda hoje usa para suspender o condutor aéreo.

Fig. 1-1 (foto a incluir posteriormente)
Ampliação do canto superior direito da Fig.1,
mostrando… o poste da Carris e o candeeiro
da iluminação pública.!

Ora, ao que se sabe, tais postes não existiram nem tinham razão de existir no Barreiro, em 1943, pelo que o indício se torna revelador.. Como se verá, numa outra fotografia tirada pela mesma reportagem fotográfica e no mesmo dia (Fig.2), surge um outro poste da Carris, este até com o número bem à vista!

2.6. Quanto ao candeeiro de ferro fundido, que a Fig. 1-1 também mostra, é de e modelo próximo ao que a Câmara Municipal de Lisboa ainda hoje usa em diversos localizações urbanas, embora com diferente globo (por exemplo, no Largo Dr. José de Figueiredo, às Janelas Verdes). Dir-se-á que no Parque Catarina Eufêmia, no Barreiro, existem também candeeiros desses. Constata-se porém que, com construção e globo como estes, em nenhuma outra localização urbana ou fotografia antiga os reconhecemos no Barreiro, e que este indício, mesmo que se possa conceder como não determinante, vai articular-se com os restantes… e é mais um elemento a ter em conta.

2.7. Ficava assim estabelecido todo um “inventário de rua” que decisivamente justificava uma procura de localização em Lisboa, já que no Barreiro se não tinha conseguido encontrar nem localização, nem resposta para os indícios reconhecidos. Procurava-se um entroncamento urbano, em T, próximo de um dos estabelecimentos industriais da CUF e do traçado de uma linha de “eléctricos”, compatível com o perímetro que a reportagem de “O Século” atribuíu à presença activa das mulheres familiares dos operários em greve no dia 28 de Julho de 1943. Na haste do T, sem ser visível o outro lado da rua, havia, em 1943, um pavimento em empedrado irregular e um passeio em pedra de espelho, cortado transversalmente por uma descarga de caleira, idêntica às que em Lisboa se encontram, uma parede (fachada) que se prolonga até quase junto à esquina, em que se abre a porta que acoberta o fotógrafo, e ainda, junto à esquina, um poste metálico da Carris e uma árvore. Ao fundo, ao longo da “barra do T”, um muro alto, com paineis, acompanha um passeio “do outro lado”, com árvores que em 1943 eram ainda “tenras” e com um candeeiro de iluminação pública em ferro fundido, encobrindo parcialmente edificações tipo armazém ou oficina.

2.8. Estabelecido todo este “caderno de encargos”, não foi muito difícil chegar à Travessa do Baluarte, que desemboca na Avenida 24 de Julho e que precisamente limita, do seu lado nascente (que se não vê na foto), um dos históricos estabelecimentos fabris da CUF na zona de Alcântara de Lisboa e que era a “Fábrica Sol”. Todos os condimentos lá estão, como se pode ver das Figs. 1-2, 1-3 e 1-4. Ao longo da Avenida 24 de Julho corre o mesmo muro com motivos iguais aos da foto de 1943 e com árvores ainda tenras ou com cepos bem visíveis no lugar das árvores que provavelmente testemunharam os acontecimentos de 1943. Na Travessa, por sua vez, mantém-se o mesmo passeio, com a mesma linha de escoamento e o mesmo empedrado que, em 2000, antes da reparação entretanto efectuada, dava interessantes indicações (que se fotografaram) para uma possível interpretação cronológica das diversas modificações, num verdadeiro exercício de “arqueologia urbana”. É mais que evidente o poste da Carris , que hoje tem o número A 843, e a árvore da esquina ou a sua sucessora. O portão de correr na fachada do lado nascente da Travessa é posterior aos acontecimentos e substituiu a porta que “albergou” o repórter fotográfico de “O

Fig. 1-2 (foto a incluir posteriormente)

O entroncamento da Travessa do Baluarte com a Av. 24 de Julho,
em Lisboa, na actualidade. No passeio fronteiro da Avenida são visíveis os cepos de árvores anteriores.

Fig. 1-3 (foto a incluir posteriormente)

(cronologicamente anterior à Fig. 1-2)
A travessa do Baluarte no ano 2000, antes das obras no passeio
da direita, em que se vê o portão de correr e a “porta gémea”;
à esquerda o edifício que era da Fábrica Sol

Fig. 1-4 (foto a incluir posteriormente)

O edifício que era da Fábrica Sol, em foto actual tirada do passeio Sul da Av. 24 de Julho, em frente da Travessa do Baluarte, vendo-se o poste da Carris nº A 843, na esquina do lado esquerdo da mesma

Século”, em 1943, e que, no entanto, tem rigorosa reprodução numa porta gémea que ainda hoje subsiste, mais para dentro da Travessa. A proximidade da Fábrica Sol e a linha de eléctrico na Avenida 24 de Julho, que constitui a “barra do T”, são situações claramente mantidas. Falta o candeeiro de ferro fundido, substituído entretanto por outro suporte de iluminação, e sobeja a sinalização vertical de trânsito que, em 1943, obviamente não existia.

2.9. Aponta-se assim para ter sido aí, na Travessa do Baluarte, freguesia dos Prazeres, em Lisboa – e não no Barreiro – que, a 28 de Julho de 1943, se passou o que a bem conhecida fotografia da Fig. 1 regista.

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