O Combate constitui um repertório indispensável para quem se interesse pelas lutas sociais em Portugal em 1974-1975 ou, mais amplamente, pelo movimento da classe trabalhadora contra todas as formas de capitalismo, tanto privado como de Estado. A colecção completa deste jornal está agora disponível aqui.
O jornal Combate foi publicado em Portugal, no âmbito das inúmeras iniciativas políticas e populares que se seguiram ao derrube do fascismo em 25 de Abril de 1974 e que durante um ano e meio transformaram o que começara por ser um golpe militar num ensaio de profunda reorganização social. O nº 1 do Combate, acompanhado do Manifesto de lançamento, tem a data de 21 de Junho de 1974 e o último número, o nº 51, tem a data de Fevereiro de 1978. Até ao nº 10, de 8 de Novembro de 1974, o Combate foi semanário. Do nº 11, de 22 de Novembro de 1974, até ao nº 47, de 22 de Outubro de 1976, a periodicidade tornou-se quinzenal, embora com algumas falhas. A partir do nº 48, de Fevereiro de 1977, e até ao fim o Combate reduziu o formato, adoptou um modelo de revista e não conseguiu manter uma periodicidade regular.
A iniciativa da criação do Combate deveu-se a João Bernardo, Rita Delgado e João Crisóstomo, este último já falecido. João Bernardo e Rita Delgado eram membros de uma organização clandestina marxista-leninista, os Comités Comunistas Revolucionários (CCR), resultantes de uma cisão ocorrida em 1969 na organização maoísta, o Comité Marxista-Leninista Português. João Crisóstomo situava-se na mesma área política e só por razões de segurança não fora integrado no aparelho clandestino dos CCR. Os CCR eram uma pequena organização actuante na região de Lisboa, quer em algumas empresas e associações operárias quer no movimento estudantil. A derrota da Revolução Cultural chinesa e a aproximação efectuada entre os governos da China e dos Estados Unidos haviam dado lugar a acesas polémicas no interior dos CCR e à formação de uma tendência, que passara rapidamente da crítica ao maoísmo à crítica ao próprio leninismo e que começara a defender uma orientação de carácter marxista libertário. Apesar de ser muito difícil conjugar o modelo de organização clandestina, indispensável na luta contra um regime fascista, com a liberdade de discussão interna e o colectivismo de decisão que singularizam os movimentos de tipo libertário, a facção dissidente dos CCR preparava-se para enfrentar este desafio. E estava em vias de assumir a ruptura pública quando ocorreu o golpe militar de 25 de Abril de 1974, que liquidou o fascismo e abriu campos de actuação inteiramente novos.
Com a criação do Combate a facção libertária abandonou os CCR para pôr em prática os seus objectivos políticos e o modelo de organização que defendia. Inicialmente os fundadores do Combate só conseguiram reunir um escasso número de libertários, porque era ainda incipiente o movimento baseado nas iniciativas autónomas dos trabalhadores, e tiveram de procurar o apoio de certos meios maoístas relativamente avessos à burocratização partidária. Mas em breve esta colaboração se revelou insustentável, ao mesmo tempo que as experiências autonomistas e autogestionárias se multiplicavam velozmente. A publicação de um aditamento ao Manifesto do Combate no nº 6, de 13 de Setembro de 1974, inaugurou o período exclusivamente libertário do jornal.
O golpe militar de 25 de Abril de 1974 levara os trabalhadores a porem em causa a autoridade no interior das empresas, que sempre havia estado estruturalmente ligada ao regime fascista, e surgiram então as comissões de trabalhadores. Consoante o jogo de forças interno, estas comissões ou se limitavam a exercer pressões sobre os patrões ou formavam na prática outra direcção ao lado da administração patronal, muitas vezes suplantando-a mesmo. Entretanto iam-se constituindo comissões de moradores nos bairros populares. Praticamente não se encontravam empresas e bairros populares que não tivessem comissões. Em muitos casos houve comissões de moradores a assumir algumas funções de administração. Além disso, a partir das experiências iniciais das empresas Sogantal e Charminha começou a difundir-se e atingiu grande amplitude a ocupação das empresas pelos trabalhadores, que as mantinham em funcionamento e se encarregavam eles próprios de todas as actividades. Com efeito, muitos patrões, atemorizados pela crescente audácia popular, fugiam para o estrangeiro e deixavam os estabelecimentos abandonados e o pessoal sem salários. As ocupações iniciaram-se como uma reacção dos trabalhadores para conseguirem sobreviver. Foi assim que na indústria e no comércio surgiram empresas autogeridas, desde pequeníssimas unidades até enormes complexos, e que nos campos do sul foram ocupadas e cultivadas colectivamente vastíssimas herdades. Nos meados de 1975 uma parte muito considerável da economia e da sociedade portuguesa estava directamente nas mãos dos trabalhadores e era organizada pelos trabalhadores.
Este movimento não se deveu à iniciativa dos partidos políticos de esquerda, que foram apanhados desprevenidos pelos acontecimentos. O Partido Comunista, muito influente nos governos militares em 1974 e 1975, pretendia fortalecer as embrionárias burocracias sindicais em detrimento das comissões de trabalhadores e procurava impedir a expansão do movimento autogestionário, de modo a promover um capitalismo de Estado assente nas nacionalizações. Contrariamente ao que se julga, mesmo nos latifúndios do sul, onde os trabalhadores eram esmagadoramente favoráveis ao Partido Comunista, as ocupações colectivas da terra deveram-se aos próprios camponeses. A palavra de ordem do Partido Comunista para os assalariados rurais fora até então apenas a luta pelo aumento dos salários. Como a repressão, embora activa, não se revelava eficaz naquelas circunstâncias, o Partido Comunista procurava usar o sistema bancário nacionalizado para, através do crédito, controlar as empresas e as herdades autogeridas e submetê-las à sua autoridade. Quanto aos diversos partidos situados na extrema-esquerda de que os mais significativos eram a União Democrática Popular (próxima da orientação então seguida no Brasil pelo PCdoB), o Movimento para a Reorganização do Partido do Proletariado (maoísta de discurso radical, na prática aliado à extrema-direita contra o Partido Comunista), o Partido Revolucionário do Proletariado (sem alinhamento ideológico definido entre as várias tendências consagradas) e o Movimento da Esquerda Socialista (formado por socialistas de esquerda que discordavam tanto da orientação direitista do Partido Socialista como do dogmatismo do Partido Comunista) nenhum teve qualquer papel determinante na génese do movimento autogestionário. Na prática cada um destes partidos estava intimamente ligado a um ou outro conjunto de regimentos, aparecendo como o braço civil de certos chefes militares, e esta vinculação às forças armadas revelava a ausência de uma ruptura com as estruturas do Estado capitalista. Todos eles estavam ocupados a dar corpo a uma ou outra modalidade de capitalismo de Estado. É certo que os militantes dos partidos de extrema-esquerda, nas empresas onde os havia, foram muito activos e desempenharam inúmeras vezes funções nas comissões de trabalhadores. Mas enquanto o movimento de base se manteve vigoroso aqueles militantes obedeciam às directivas fixadas pelas assembleias de trabalhadores e não às determinadas pelos respectivos partidos. E quando o movimento de base declinou as comissões de trabalhadores ficaram isoladas, e o facto de fazerem parte delas não proporcionou então a esses militantes um acréscimo de audiência.
Apesar dos obstáculos ao desenvolvimento das lutas, e quaisquer que fossem os rumos seguidos, em todos os casos os trabalhadores conseguiram alcançar o poder suficiente para abrir as portas das empresas e para permitir que o movimento político mais amplo minasse a disciplina patronal. Foi nestas condições que o jornal Combate surgiu e pôde subsistir. E o fim desta situação ditou o fim do jornal.
O objectivo do Combate era divulgar as lutas da classe trabalhadora e as sua formas organizativas, tanto na indústria e no comércio como nos campos do norte e do sul do país, sem esquecer o movimento nos bairros. Além disso o Combate dava todo o relevo possível às lutas contra a disciplina militar, o que era especialmente importante num contexto em que as forças armadas se encarregavam directamente do governo e gozavam do enorme prestígio de haverem derrubado o fascismo. O Combate esforçava-se ainda por chamar a atenção para as lutas dos trabalhadores estrangeiros, e em cerca de quatro quintos dos números apareceram notícias referentes a outros países. O Combate publicou igualmente numerosas transcrições da imprensa operária, pois naquela época proliferavam os boletins de empresa. Os colaboradores do Combate esperavam que, através de todos estes relatos, trabalhadores colocados em situações semelhantes aprendessem com os seus companheiros, contribuindo para que as experiências mais avançadas se generalizassem e se unificassem em frentes comuns. Com este objectivo o Combate organizou diversos debates entre trabalhadores de várias empresas em luta; para além da publicação das intervenções, os colaboradores do jornal consideravam que esta era uma maneira de estimular as relações entre os grupos de trabalhadores directamente ao nível da base.
Mais do que o conteúdo explícito das reivindicações, eram sobretudo as formas de organização criadas espontaneamente que os colaboradores do Combate se interessavam por investigar e promover, pois viam nelas a base de uma democracia operária e o agente de destruição das hierarquias do Estado capitalista. Para o Combate, a clivagem fundamental da sociedade portuguesa após o 25 de Abril de 1974 opunha, de um lado, as várias modalidades de implantação do capitalismo de Estado e, do outro lado, a tentativa de incrementar o poder directo dos trabalhadores de base, sem recurso ao aparelho de Estado e desenvolvendo a autonomia organizativa e a autogestão económica. O capitalismo de Estado era instaurado pelo Partido Comunista através de sucessivos governos militares, e os múltiplos partidos da extrema-esquerda ou colaboravam activamente neste projecto ou não se distanciavam dele. Quanto ao Partido Socialista, estava dividido entre uma ala propensa à colaboração com os governos militares e com os comunistas, e outra ala que pretendia o estabelecimento de uma democracia capitalista de estilo europeu e para isso conspirava com a direita e a extrema-direita e com a embaixada dos Estados Unidos. E o Partido Popular Democrático, embora formalmente se situasse mais à direita do que o Partido Socialista no espectro da social-democracia, não opôs naquela época obstáculos significativos à orientação prosseguida pelos comunistas e pelos governos militares. Na conjuntura portuguesa de 1974 e de 1975, quando os donos das empresas ou se encontravam em fuga ou estavam vigiados de muito perto pelas comissões de trabalhadores, os colaboradores do Combate consideravam o capitalismo de Estado como um perigo imediato mais grave do que o capitalismo privado, e era nos termos daquele antagonismo que prosseguiam a sua actividade prática e elaboravam as suas análises políticas.
Das oito páginas do Combate, enquanto manteve o formato de jornal (com excepção de três números especiais, mais volumosos), sete páginas eram reservadas às lutas nas empresas, nos campos, nos quartéis ou nos bairros, e só uma era dedicada à análise da situação elaborada pelos colaboradores sob a forma de editorial. Os relatos das lutas eram sempre feitos directamente pelos participantes. Equipas de colaboradores deslocavam-se por todo o país, iam aos locais, gravavam entrevistas com membros das comissões de trabalhadores ou das comissões de moradores, muitas vezes entrevistavam também trabalhadores de base, e as declarações eram transcritas e publicadas na íntegra. Sob o ponto de vista estilístico a publicação do conteúdo completo das entrevistas tinha sem dúvida inconvenientes, tornando-as demasiado extensas e repetitivas, mas sob o ponto de vista político as vantagens eram consideráveis, porque os colaboradores do Combate jamais podiam ser acusados de fazer cortes indevidos ou de excluir passagens desfavoráveis às suas opiniões, o que sucedia com outros jornais da esquerda e da extrema-esquerda. Nunca o Combate registou quaisquer protestos dos entrevistados, e todos sentiam que as suas declarações, mesmo quando entravam em confronto com a orientação do jornal, haviam sido reproduzidas com fidelidade.
Embora sem ter militantes inscritos, o Combate contava com dois corpos regulares de colaboradores, um localizado em Lisboa e o outro na cidade do Porto. Como as reuniões se realizavam de porta aberta, durante o período de pujança do jornal o número de colaboradores eventuais era maior, por vezes bastante maior, do que o dos regulares, e sucedia que trabalhadores de empresas cujas lutas haviam sido relatadas num número do Combate colaborassem na realização do número seguinte. Depois, quando o movimento autónomo e autogestionário começou a dar sinais de declínio e as iniciativas de base esmoreceram, os colaboradores irregulares praticamente desapareceram e os regulares reduziram-se, passando a elaboração do jornal a depender de muito poucas pessoas, que deparavam com grandes dificuldades. Todavia, desde o seu primeiro número até ao penúltimo (o último foi copiografado), o Combate não teria conseguido subsistir sem o apoio dos operários das tipografias onde era impresso.
No Combate as tarefas eram distribuídas com igualdade e não existiam cargos directivos. A indicação de um nome de director, que aparecia no cabeçalho do jornal, era fictícia, para cumprir um requisito da lei. Todos os presentes podiam dar a sua opinião, e quando se tratava de votar todos podiam fazê-lo com a condição de se encarregarem de qualquer tarefa. A norma era a de que só tinha direito de voto quem colaborava na prática. Os editoriais eram debatidos por todos os presentes e, uma vez decidido o tema, definiam-se as linhas orientadoras da análise e escolhia-se quem se encarregava da redacção. Procurava-se geralmente chegar a consenso, em vez de se tomarem decisões por maioria. Na maior parte dos casos não havia tempo para voltar a discutir o editorial já redigido, porque os acontecimentos precipitavam-se a uma velocidade vertiginosa, mas nunca surgiram protestos por parte de colaboradores que sentissem as suas opiniões traídas. Independentemente de quem escrevesse cada editorial, eles resultavam de um trabalho colectivo e respeitavam as deliberações tomadas.
No início de 1975 o grupo de colaboradores do Porto tomou a iniciativa de abrir uma livraria, a que chamou Contra a Corrente, e de começar a editar brochuras impressas ou policopiadas. A livraria servia de lugar de reunião não apenas aos colaboradores do Combate mas a outros grupos de tendência libertária ou autonomista, sem que fossem colocadas quaisquer condições para isso. Em Outubro de 1975 os colaboradores de Lisboa abriram também uma livraria e lugar de reunião, chamada igualmente Contra a Corrente e com as mesmas características. As brochuras editadas, trinta e uma no total, sem contar com algumas traduzidas em inglês e em francês, ou se dedicavam a analisar questões relacionadas com a situação política e económica portuguesa ou procediam à crítica teórica do capitalismo de Estado. Algumas relatavam também experiências de luta dos trabalhadores, nomeadamente na indústria do calçado e nos portos.
Concentrando-se nas lutas ao nível das empresas, dos quartéis e dos bairros e dando prioridade a ouvir os próprios trabalhadores e a auscultar as suas formas de organização, o Combate pôde detectar desde muito cedo o declínio do movimento. O facto de uma comissão ser eleita por um conjunto de trabalhadores, reunido em assembleia, em condições de grande democraticidade, e de dever em princípio prestar contas a quem a elegera, podendo ser substituída se a sua actuação não correspondesse aos desejos das bases, estava longe de significar que na prática as coisas se passassem sempre dessa maneira. No nº 15, de 17 Janeiro de 1975, já o Combate se preocupava com a burocratização de numerosas comissões de trabalhadores e com a ausência de intercomissões, e procurava analisar as raízes desta situação negativa. E em Julho de 1975, quando os comentadores eram unânimes em afirmar que se vivia o «Verão Quente», o editorial do Combate nº 27 denunciava os sintomas de desânimo dos trabalhadores de base, o isolamento crescente das comissões de trabalhadores e a incapacidade de se formarem organismos coordenadores destas comissões. Por outro lado, quando um golpe militar de direita pôs cobro em 25 de Novembro de 1975 à hegemonia do Partido Comunista no governo e além disso liquidou o que restava do processo revolucionário, foram ainda os editoriais do Combate que, ao contrário do que sucedeu então na generalidade da imprensa esquerdista, afirmaram tratar-se de uma instauração musculada da democracia capitalista e não de um regresso ao fascismo. A lucidez política de que o Combate deu mostras repetidamente deveu-se às condições em que era elaborado, em estreito contacto com a base real do movimento da classe trabalhadora e preocupando-se acima de tudo com as formas espontâneas de organização.
O Combate resistiu o mais que pôde, mas o declínio das iniciativas de base da classe trabalhadora e a extinção da autogestão das empresas comprometeu a razão de existência do jornal. Transformando-se em revista, o Combate deixou de funcionar de portas abertas não havia ninguém para entrar, por mais abertas que as portas estivessem e restringiu-se a um número de colaboradores que, se já se tornara pequeno, ao longo dos meses ficou ainda mais reduzido. A experiência do Combate e das livrarias Contra a Corrente, gerada no movimento clandestino antifascista, foi indissociável do movimento anticapitalista de 1974 e 1975, nascendo e morrendo com ele.