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Os portugueses começam a escrever memórias. Ou melhor, uma geração de portugueses começa a escrever memórias, uma prática relativamente rara na nossa história recente. Augusto Athayde, Rosado Fernandes, Marcelo Mathias, entre outros, escreveram memórias vindas ou do lado do poder, ou do lado “calmo”, da vida familiar, cultural, profissional das últimas quatro décadas. Os nomes antigos não enganam. Todas estas memórias são relevantes, e merecem um tratamento de per si, mas pretendo falar agora da memorialística vinda da oposição ao regime de Salazar e Caetano, cobrindo em particular os anos sessenta e setenta, o que significa essencialmente livros de comunistas e esquerdistas.
Após o livro precursor de José Silva Marques, a primeira e excelente memória “livre” vinda do PCP, sucederam-se as memórias de dissidentes comunistas que começaram finalmente a contar o interior comunista em contraponto com a memorialística oficiosa, centrada na experiência prisional e na versão épica do PCP. Entre outros, os livros de Rui Perdigão, Edmundo Pedro e Raimundo Narciso (sobre a ARA e as dissidências posteriores ao 25 de Abril), que serão em breve seguidos pelas memórias de Zita Seabra, mostram a máquina interior do PCP, com os seus poderes reais e não ficcionais, os rituais e “culturas” circulantes.
Uma novidade neste surto memorialístico são os livros escritos por antigos militantes radicais, naquilo que se pode genericamente chamar “extrema-esquerda”. Vários autores já o tinham feito, mas agora, talvez porque a idade já começa a ter peso, começam a surgir mais memórias. O livro já antigo de Saldanha Sanches contra o MRPP, os livros de Fernando Pereira Marques (Maio de 1968 e a LUAR), Sacuntala de Miranda (o MAR e a oposição no exílio), César Oliveira (da tentativa de reanimar um “sindicalismo revolucionário” ao proto-MES), João Bénard da Costa (sobre o catolicismo progressista), mesmo a autobiografia de Maria Filomena Mónica, entre outros, continham elementos para essa memória do radicalismo.
Nos últimos dois anos surgiram memórias de Pinto de Sá (uma memória do CCRML, da prisão e da “traição”), Joana Lopes (uma memória do catolicismo progressista no momento anterior à deriva guerrilheirista e da luta armada), Jorge Silva Melo (um retrato do esquerdismo cultural da geração de sessenta), e agora, o motivo próximo deste texto, o livro de João Freire, marinheiro, desportista, desertor, anarquista, salvador da memória anarquista, ensaísta e sociólogo.
Estas memórias pós-comunistas, chamemos-lhes assim, escritas por pessoas que militaram na extrema-esquerda ou na sua mouvance, acrescentam uma experiência nova e uma “história” nova às histórias conhecidas. São também um retrato de uma geração de forte identidade que, partilhando coisas em comum com as gerações anteriores (e com os seus contemporâneos que continuaram “anteriores” como os que continuaram a militância no PCP), se distinguiu muito significativamente no modus vivendi e no modus operandi. Se, no início dos anos sessenta, um jovem comunista e um jovem esquerdista, nas células estudantis do PCP e na Frente da Acção Popular, a primeira organização pró-chinesa, eram bastante parecidos, já depois de 1968, à medida que o trajecto político de muitos esquerdistas já não passava pelo PCP e era mesmo feito contra o PCP, o mundo de um dos estudantes que Zita Seabra controlava na década de setenta, e o de um jovem MRPP na Faculdade de Direito de Lisboa ou de um membro do “Grito do Povo” no Porto, já era muito diferente.
Nos livros mais recentes que referi, há felizmente uma grande diversidade de “experiências”, quer em trajectos políticos, quer em locais, quer em ideias, mesmo quando neste último caso é possível ver a profunda marca do tempo dos anos sessenta e do seu ano-milagre, 1968. Quase todas estas memórias são cosmopolitas, um traço comum com muitas memórias comunistas. Nos livros que referi, a excepção mais “provinciana” é a de Pinto de Sá, em parte porque as memórias angolanas do seu autor não eram fáceis de incorporar no quadro da política radical, mas quer Joana Lopes, em Lovaina, Jorge Silva Melo, na “Europa”, ou João Freire, em França, fazem um contínuo de territórios muito marcado pela oposição ditadura-liberdade separada pela fronteira dos Pirenéus. Quer por causa do exílio, quer pelo “internacionalismo” político, as memórias esquerdistas e comunistas não só são estrangeiras (Paris, Genebra, Lovaina, Londres, Argel) como são internacionalizadas – os eventos marcantes ocorrem em França, na Alemanha, em Itália, em Cuba, na Argélia, em África, na China, na América Latina. Um esquerdista típico sabia uma quantidade considerável de informações sobre a política radical nos locais mais quentes do globo, embora soubesse bastante menos sobre Portugal, quer por causa da censura, quer pela pouca reflexão existente sobre Portugal e ou portugueses fora da dogmática, quer por “nojo” com o país provinciano e claustrofóbico de onde queria fugir. Nesse sentido, há um contraste nítido com a geração radical da extrema-direita, animada em grande parte pelo grupo à volta de Jaime Nogueira Pinto, que se interessava por África por razões identitárias nacionalistas.
Dos livros que referi, o de Pinto de Sá é único, não só para o seu tempo, como para toda a memorialística portuguesa, porque é a história de uma vida devastada pela sentimento de “traição”, pela violação da regra escrita e não-escrita, do “porte na cadeia”, a de que não se falava na prisão sem ter como consequência a vergonha e o ostracismo. Muita gente falou na cadeia, mas o caso de Pinto de Sá vai até ao limite da abjecção, com a colaboração com a PIDE, um fenómeno de identificação com o inimigo que lhe valeu ser preso de novo depois do 25 de Abril e ter que partilhar a cadeia com os seus antigos carcereiros da PIDE.
Sendo uma história de cobardia, é um livro corajoso. Para além da catarse dos eventos traumáticos e mesmo apesar de, na versão publicada e na polémica posterior, o autor ter iniciado um processo de autojustificação, mesmo assim, sobra um relato doloroso, intenso, da perda de auto-estima, de culpa, de quase autopunição. Só quem não conheça a história subterrânea das vidas na oposição é que pode pensar que este sentimento era raro, e desconhecer que muitas vidas foram por ele destruídas, vidas de pessoas muitas vezes brilhantes, cujas expectactivas foram devastadas por terem falado na prisão e pela vergonha interior desse momento de fraqueza. Essas mortes em vida foram e são uma das mais violentas marcas da ditadura e, por si só, uma das razões principais por que a geração que conheceu estes dramas não pode ser complacente com a nostalgia salazarista e pidesca.
(No Público a 9 de Junho de 2007)
(2): UMA BIOGRAFIA BEM POUCO “COMUM”
O livro que suscitou este texto foi editado pela Afrontamento e relata as memórias de João Freire, intituladas Pessoa Comum no Seu Tempo. Memórias de Um Médio-Burguês de Lisboa na Segunda Metade do Século XX. É um livro muito especial, muito muito especial, o mais estranho, peculiar, pessoal, imprevisível, se bem que menos dramático, de todos os livros destas memórias radicais sobre que escrevo, nas suas seiscentas páginas em tipo pequeno, com as suas mil notas de pé de página, algo de muito incomum numa autobiografia. O título revela o seu autor, a sua modéstia, a sua autoclassificação de uma honestidade quase obsessiva de “pessoa comum”, um “médio-burguês de Lisboa”.
Uma breve nota sobre a capa: é difícil fazer pior. Será que a Afrontamento não quer mesmo vender o livro?
Numa geração pouco dada à modéstia, João Freire conta a sua vida num modo de permanente understatement, completamente desprovido de qualquer ironia, tomando-se a sério como já ninguém se toma a sério. Mas é exactamente essa seriedade, que emana de um sentimento de dever e obrigação, que muitos nos anos 60 tinham no compromisso político, mas já não tinham em muitos outros aspectos da sua vida pessoal, mais “solta” pelos tempos, mais “solta” por Maio de 68, menos “séria” e mais lúdica. É interessante verificar como, no caso de João Freire, para quem o Maio de 1968 é fisicamente próximo, este se revela muito menos importante do que a sua experiência como oficial da Marinha, ou como desportista, ou a sua vida “no meio operário”. O evento que verdadeiramente separa o seu livro em dois volantes distintos é a deserção da Marinha, momento de obrigação, mas sentido também como de culpa, que João Freire só redime muitos anos depois escrevendo um notável ensaio intitulado Homens em Fundo Azul Marinho, como é nosso costume, bastante ignorado.
João Freire é um personagem incomum pelo seu trajecto pessoal e político, muito longe do típico estudante e intelectual que constituía o grosso dos quadros e militantes da extrema-esquerda, com a sua biografia de oficial da Marinha, uma arma bem representada na oposição, mas pouco na extrema-esquerda, e com a sua experiência de desportista, em desportos tão pouco comuns como a esgrima. Na verdade, a aproximação de Freire ao mundo turbulento da extrema-esquerda, posterior à sua deserção da Marinha, tem muito a ver com o ambiente do exílio parisiense. Como aconteceu com muitos jovens que eram exilados políticos, a vida em Paris não lhe foi fácil. Freire trabalhou como porteiro nocturno num hotel de décima categoria, povoado pela fauna peculiar desse tipo de casas e como operário fabril, profissões do tipo das que tinham outros exilados que trabalhavam em aviários, restaurantes, fábricas e mil e um empregos menores.
Muitas vezes hoje, quando vemos os títulos académicos obtidos por esses exilados, em Nanterre, na Sorbonne, em Science Po, e noutras escolas prestigiosas, tendemos a pensar que tudo foram facilidades, mas não foram. O momento que apanharam numa França pós-Maio 68 é que foi excepcional, com muitas escolas a facilitarem ao extremo a obtenção de cursos universitários de muitos que depois se revelaram académicos de mérito, que permitiram às universidades portuguesas depois do 25 de Abril uma modernização com gente que trazia currículos académicos em áreas proibidas em Portugal, como a sociologia e a ciência política.
Lendo-se o seu livro encontramos a experiência intensa dos Cadernos de Circunstância, um grupo de intelectuais e militantes políticos da “ultra-esquerda”, marginal aos grupos maoístas e guerrilheiristas, num movimento em que confluíam tradições muito minoritárias dentro do comunismo, como o conselhismo, o “comunismo de esquerda”, os bordiguistas, até aos situacionistas e anarquistas. De paralelo difícil com outras tradições radicais, é mais fácil aproximá-los de grupos obreiristas italianos, do Potere Operaio e de autores como Mario Tronti e Toni Negri, com quem tinham contactos.
Quando nos lembramos dos mesmos tempos não nos lembramos do mesmo. Á distância tudo parece semelhante, mas quão diferente foi, diferenças de tempo, de lugar, de vida, mas também de organização, de tradição política, de leituras de amizades. As memórias quer de Pinto de Sá, quer de Joana Lopes remetem para outras experiências políticas e ideológicas, assim como “de lugar”, onde a experiência do “interior” é mais importante do que a do exterior. A memória de Pinto de Sá é a de um mundo dogmático, estéril, funcionalizado, burocrático, do extremo-maoismo, do marxismo-leninismo ultra-teórico dos Comités Comunistas Revolucionários Marxistas-Leninistas (CCRML), a organização onde militaram Mariano Gago, alguns actuais professores do IST, o jornalista Joaquim Vieira, Acácio Barreiros e Jorge Coelho, dirigida por João Bernardo, uma das personagens mais complexas da extrema-esquerda portuguesa. Os CCRML eram uma divisão de uma divisão de uma divisão, um dos mais pequenos grupos maoistas, com influência no IST e conduzido a partir da emigração por João Bernardo, o oportunista Tiago, que fora expulso do Comité Marxista-Leninista Português (CMLP), dirigido por Heduíno Gomes (Vilar), por, entre outras coisas, ter continuado a ver televisão mesmo depois do seu controleiro entrara em casa. A “expulsão” do “oportunista Tiago” deu origem a um dos mais típico textos da tradição do requisitório comunista-maoista, de que aqui se transcreve uma parte:
João Bernardo, evoluindo do maoismo para um marxismo conselhista, tornou-se um dos mais prolificos autores marxistas portugueses, quase ignorado em Portugal, mas bastante conhecido nos meios universitários radicais brasileiros onde há quem estude Marx, Engels, Lenine, Staline, Mao Zedong…e João Bernardo. Existe uma entrada na Wikipedia sobre João Bernardo, com os erros habituais, mas que pode servir para se ter uma ideia do seu trajecto.
O mundo obsessivo dos CCRML, em que o número de militantes era proporcionalmente inverso às centenas de páginas das suas publicações teóricas e documentos interiores, cartas, directivas, relatórios, etc, etc. é bem retratado no livro de Pinto de Sá na sua esterilidade burocrática. Organizações como os CCRML, que se centravam no trabalho teórico, o que quase sempre significava um discurso de permanente demarcação territorial da verdadeira organização, em particular na tradição maoista da parteiaufbau, da genuina organização construtora do partido.
Bem diferente é a experiência de Joana Lopes, que faz uma evolução típica do catolicismo progressista para a radicalização políica. Em Portugal, como em Espanha, na América Latina e em Itália, o catolicismo progressista, uma expressão passe-partout e com algumas ambiguidades, foi uma das fontes mais importantes para o guerrilheirismo e mesmo para o terrorismo político de grupos como as Brigadas Vermelhas, onde antigos dirigentes das juventudes católicas deram um contingente importante para a luta armada. No caso português, o mesmo aconteceu com o desaguar na LUAR e no PRP-BR de muitos católicos que começaram, a sua militância na Igreja pós-conciliar e se foram radicalizando politicamente. Mas os “meios” do catolicismo progressista, com o seu convívio próximo com as instituições da Igreja, com padres, diáconos, frades, bispos, seminários, capelas e o mundo da JUC, JEC , JOC, e da Acção Católica, com o seu tipo de preocupações, temas, histórias e “estórias” e leituras próprias, distinguiam-se dos do esquerdismo puramente estudantil, laico, agnóstico e ateu.
Os Cadernos de Circunstância, obra de Manuel Villaverde Cabral, Jorge Valadas (conhecido também pelo pseudónimo de Charles Reeve), Fernando Medeiros, Alfredo Margarido, Alberto Melo, João Freire e José Maria Carvalho Ferreira, e que contava com colaboradores como José Gil, Mário Barroso, Leonor Coutinho, e Arnaldo Fleming, entre outros, constituíam um grupo de jovens brilhantes, impregnados pelo “ar do tempo”, que se interessavam por conhecer e interpretar teoricamente o seu país e o mundo, numa reflexão impossível de ter em Portugal. O trabalho dos Cadernos de Circunstância, como o da revista Polémica, animada a partir da Suíça pelo grupo que compreendia António Barreto, Medeiros Ferreira, Eurico de Figueiredo, Carlos Almeida e Manuel Lucena, representam casos raros de uma reflexão teórica feita a partir do exílio, fortemente dependente do marxismo, mas tentando incorporar na análise teórica dados económicos e sociais, observações sociológicas, antropológicas, de filosofia e teoria política.
Depois dos Cadernos de Circunstância, João Freire também foi “incomum”, e veio a evoluir para o anarquismo, de que foi o principal obreiro na nova geração de grupos anarquistas que apareceu pouco antes do 25 de Abril. Tratava-se de um punhado de pessoas, muito escasso, contavam-se pelos dedos de uma mão, que dificilmente se ligavam à geração dos velhos anarquistas e anarco-sindicalistas, e que animou novos grupos anarquistas e publicou revistas como a A Ideia, obra do Grupo Os Iguais. Anarquista, João Freire acompanhou a militância política com uma carreira académica no ISCTE, escrevendo sobre o mundo do trabalho, e sobre a história do anarquismo, tendo tido um papel central na salvaguarda e colocação ao dispor do público na Biblioteca Nacional do arquivo que tinha sido possível salvar do antigo movimento anarquista e anarco-sindicalista que fora dominante no movimento operário da I República.
No final do seu livro, João Freire faz uma bizarra contabilidade: afirma ter conhecido bem cerca de 900 pessoas e contactado cerca de 4000, e acrescenta que um “especialista deverá poder comentar o significado deste número“. Esta é mesmo a última frase do livro, um final de grande perplexidade, o cúmulo do understatement que num certo sentido coloca em questão tudo, como se a vida que se narra na primeira pessoa pudesse ser interpretada por cima, por uma metalinguagem a que se entrega essa mesma “vida” para análise. Que “especialista”? Um psicólogo, um psicanalista, um sociólogo, um antropólogo? Talvez todos, porque o que João Freire entrega nas suas memórias ao “tempo” não é o relato de uma “pessoa comum”, mas a de um homem que sentiu conscientemente o seu “tempo” como uma obrigação de vida, de uma certa vida, nem sempre a mais fácil, mesmo quando hoje nos parece ter sido fácil. Ora isso não é assim tão “comum”.
(Versão desenvolvida do artigo do Público, 16 de Junho de 2007)