SOBRE O DOSSIER TARRAFAL

Para comemorar o 70º aniversário da criação do campo do Tarrafal, a editorial do PCP, as Edições Avante!, publicou um Dossier Tarrafal. Nesse volume, sem autoria a não ser a da Editora, o que quer dizer de autoria da direcção do PCP, são incluídos documentos conhecidos como também outros inéditos. Como a publicação de documentos inéditos oriundos dos arquivos do PCP não abunda, foi com muito interesse que li este volume. Infelizmente  confirmei na sua leitura que o PCP não consegue ultrapassar a sua enorme dificuldade em contrariar as versões oficiais da sua história, com fins de legitimação política, e qualquer política de publicação de documentos inéditos acaba por ser muito restritiva para não entrar em contradições com essas mesmas versões oficiais.

É o caso deste volume, aliás feito sem grandes cuidados de rigor, sem notas, e omitindo muita informação de enquadramento que podia valorizar o que de inédito lá se publica. Grande parte do volume é constituído por documentos já conhecidos ou publicamente acessíveis – artigos do Avante! e testemunhos de antigos presos do Tarrafal – a que são acrescentados dois grupos de inéditos: “diários” do Tarrafal escritos por presos não identificados, e peças da correspondência entre a Direcção da Organização Comunista do Tarrafal e a direcção do PCP, representada por Álvaro Cunhal . Sabia-se da existência destes documentos nos arquivos do PCP, como aliás de outros que continuam a ser escondidos, mas o partido não permitia o seu conhecimento á investigação histórica.

Como é habitual nas publicações do PCP é a perspectiva repressiva-heróica  que domina o volume, o que se compreende no seu papel de denúncia, mas acrescenta muito pouco á história do Tarrafal, e ainda menos à história dos comunistas no Tarrafal, uma parte apenas dos seus presos. Do ponto de vista do detalhe sobre as condições prisionais, sobre as violências cometidas pelos carcereiros, sobre a devastação causada pela doença e pelos maus tratos, os “diários” oferecem mais detalhes que permitem conhecer melhor o aspecto de extrema punição, quase exterminista,  que o campo de concentração tinha. Basta ver como a doença matava em três a cinco  dias: “6- apareceu uma biliosa ao Damásio Martins Pereira; 11 – faleceu o Damásio”; “Deu um ataque ao Vale Domingues que faleceu uns minutos depois”, etc., etc. Este aspecto, como o seu reverso, a luta dos prisioneiros para conseguir concessões da direcção do campo, fica a conhecer-se melhor com a publicação destas fontes primárias.

Mas tudo o resto fica na mesma, em particular tudo o que tenha a ver com a política, quer entre os comunistas e os outros grupos de presos, em particular, os anarquistas; quer entre os diferentes grupos em que os comunistas se dividiram e a sua complexa relação com o PCP na metrópole. Aí os documentos inéditos escolhidos foram seleccionados a dedo para não se saber mais e a habitual política de ocultação e falsificação da história do PCP continua de vento em popa.

Comecemos pelos escassos fragmentos de novidade com relevo neste volume todos eles compreendidos na correspondência entre a Organização Prisional Comunista  (OPC) e a direcção do PCP e vice-versa.  O que há de novo é o seguinte:

1-   Alguns detalhes sobre a política de expulsões da OPC dentro do campo (p.207)

2-   Uma lista enviada pela OPC sobre os nomes de “quem se podia falar”, ou seja dos militantes que permaneciam nas boas graças da direcção do campo (p.215-9); que deve ser lida em conjunto com outras indicações sobre quem devia ver o nome varrido das publicações do partido (como José de Sousa ou Álvaro Duque da Fonseca, p. 231).

3-   As referências, embora muito escassas, ao “grupo provocador daí” ou seja á direcção Vasco Carvalho e a Velez Grilo e ao apoio que o Secretariado recebeu de alguns militantes no Tarrafal na “reorganização”. Saliente-se que apenas uma vez uma nota das edições Avante” iliba um elemento expulso no Tarrafal, Tomás Rato,  informando que voltou a ser admitido no partido. Mantêm-se assim todas as acusações aos membros do chamado “grupelho” inclusive de actuação conjunta com a PIDE, sem o PCP entender acrescentar uma nota explicativa sobre  acusações que o próprio Cunhal admitiu, quase cinquenta anos, depois serem falsas.

4-   Detalhes sobre a intervenção do PCP no debate sobre o Programa do Conselho Nacional de Unidade Anti-facista em 1944, que esclarecem o papel do partido (e de Cunhal em particular) na versão final do Programa. É talvez aqui que este volume seja mais útil para ajudar a completar a história do MUNAF.

5-   Dois detalhes importantes por contrariarem as versões revisionistas do PCP feitas ainda no final da década de quarenta (de responsabilidade de Cunhal contra Piteira santos) e cinquenta (de responsabilidade de Fogaça após a execução de Domingues): um, a descrição já muito prudente dos objectivos dos Grupos Anti-fascistas de Combate (p. 254-5); e outra a referência às “diligências em conjunto com o PCE” para o regresso de Manuel Domingues “um esplêndido camarada”.

Mas o que falta é abissal. No período da existência do Tarrafal, toda uma série de polémicas e discussões, divisões, anátemas e expulsões, atravessou quer a OPC quer o PCP continental, e sobre isso nada de novo é acrescentado, embora os documentos fundamentais e politicamente relevantes estejam nos arquivos do PCP. É verdade que o editor informa que apenas “algumas”, uma “selecção”, de cartas da correspondência entre a OPC e o Secretariado tenham sido publicadas, mas que sentido tem continuar a pretender manter em segredo aquilo de que já se sabe pelo menos em linhas grossas. Nem uma linha sobre as polémicas entre anarquistas e comunistas sobre a atitude a manter face às autoridades no Tarrafal, nem uma linha sobre os debates á volta do Pacto Germano-Soviético e as propostas que Bento Gonçalves fez ao sabor das reviravoltas da política da URSS, nem uma linha sobre que papel teve a OPC no desencadear da “reorganização”, nem uma linha – e aqui a omissão é gritante – sobre a chamada “política de transição”, cuja crítica por Cunhal fundou ideologicamente o PCP até aos nossos dias.  Estas omissões grosseiras diminuem significativamente o interesse deste volume e mostram que o PCP continua incorrigível a tentar tapar com o seu dedo o conhecimento da sua história, da nossa história contemporânea.

2 comments

  1. Fernando Cardoso

    Fico-lhe muito grato se me ajudasse a encontrar mais pormenores sobre a vida na prisão do Tarrafal do meu tio Alvaro Duque da Fonseca, cujo nome vem mencionado na lista do PCP a ser varrido das publicações do partido.

  2. Carlos Gil

    fui amigo do seu filho, Vasco “Vasquinho” Duque Fonseca, em LM, Moçambique; smos sensivelmente da mesma idade, ele era baterista em grupos musicais-pop rock. na tropa, que fez antes do 25A foi “comando”, tendo sido ferido com estilhaços de granada num acidente poer descuido dum camarada. embora já não o veja há mais de trinta anos. casou com a Mizé, com quem julgo que ainda vive, por referências muito vagas que se ouvem um pouco aqui e ali

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