E se se virasse o feitiço contra o feiticeiro? Que quero dizer com isto? Que, tal como Pacheco Pereira analisou a personagem Cunhal, apeteceria que alguém analisasse a dele, à luz desta imensa obra que há largos anos vem escrevendo. É que, conhecido militante do PSD, Pacheco Pereira nunca renegou as suas origens, a de um homem que nasceu para a Política na extrema-esquerda, de um homem que nasceu para a História como investigador das lutas do movimento operário. Um homem que, para além das suas múltiplas actividades (política, académica, na imprensa e outras), aos 56 anos, continua a dedicar-se ao estudo – exaustivo – da figura (e da personagem) de Cunhal e do Comunismo português e internacional. Não o fazendo para denegrir (nem elogiar). Tão-só para perseguir um interesse inicial e iniciático que vem dos seus 19 anos.
Jornal de Letras: O III volume levou-lhe mais tempo (quatro anos) do que o II e cobre apenas uma década. Está anunciado já o IV volume, mas não haverá um V?
José Pacheco Pereira: Com antecedência, não sei. Até agora, com excepção do I (que abrange a infância e a adolescência), tem sido mais ou menos um volume por década, mas não posso saber se estes 14 anos que faltam [1960-74] vão dar um volume ou dois. Casa volume tem problemas próprios. O principal do I volume residia no facto de já haver poucas testemunhas vivas, e as que havia tinham 70, 80, 90 anos e muitas delas próximas de Álvaro Cunhal, sensíveis às pressões que ele fez para que não falassem para o livro. Havia uma escassez de informação testemunhal directa, mas, pelo contrário, havia uma grande riqueza documental nos arquivos soviéticos. Para o II volume, que abrange mais ou menos os anos 40, havia ainda muito testemunho importante e também material arquivístico soviético.
Lê russo?
Com alguma dificuldade, mas sou capaz de saber o conteúdo do texto.
Qual o problema para os anos 50?
Havia um problema político, porque são anos malditos para a história oficial do PCP. As referências sobre esta década limitam-se a duas ou três: um documento a favor da independência das colónias em 1957, a morte de Catarina Eufémia e pouco mais. Era uma história maldita, porque, nos anos 60, Cunhal atacou a condução política do partido nos anos 50. É uma história muito conflitual, com muitos episódios que não cabem dentro da heróica e épica, habitual na versão oficial do PCP. Isto fazia com que mesmo os testemunhos dos anos 50 omitissem todo o debate político dentro do partido. Ao mesmo tempo, também as fontes soviéticas escasseavam porque os arquivos, salvo uma ou outra excepção, não se abriram para estes anos. Defrontei-me, portanto, com vários problemas. Daí a demora. Em contrapartida, apesar de tudo, havia nos arquivos da PIDE muita documentação, visto que arquivos importantes do PCP tinham sido por ela apreendidos, quer no início da década de 50, quer na de 60; em especial os papéis manuscritos de Octávio Pato que a PIDE não tinha tratado. São centenas de páginas, o que me permitiu reconstituir todo um conjunto de reuniões. Só que o tratamento desses papéis levou-me imenso tempo. Tive que os ordenar, que os datar. Já comparei este livro a uma espécie de renda de bilros, porque para reconstituir uma reunião tive que recorrer a parte de um texto manuscrito, a um depoimento na PIDE (com os cuidados que é necessário ter com esse depoimentos), a um fragmento de um testemunho, a um excerto de um comunicado. A maioria das coisas foi reconstituída de forma muito fragmentária. Claro que desconheço se actas dessas reuniões existem nos arquivos do PCP, porque estão fechados, mas estou seguro que a minha reconstituição é sólida em função dos documentos que se conhecem.
Haja quatro ou cinco volumes, digamos que, concluída a biografia política de Álvaro Cunhal, terá gasto dez anos da sua vida nesta obra. O que é que o levou a isto?
Fiz tudo por gosto. A raiz do gosto por estas coisas é anterior ao 25 de Abril. Quando publiquei o meu primeiro livro (As Lutas Operárias contra a Carestia de Vida em 1918, apreendido pela PIDE), de alguma maneira defini os meus interesses neste âmbito. Esse livro, juntamente com os de César Oliveira, foi o primeiro, moderno, sobre a História do Movimento Operário Português. É que dera-se uma ruptura da memória e a maioria das pessoas da minha geração não sabia nada sobre a experiência anarco-sindicalista, ignorava que tinha havido greves, que tinha havido um Partido Comunista fundado em 1921? Depois escrever sobre estas coisas tornou-se trivial, mas então o meu livro foi pioneiro.
Essa ruptura deve-se apenas à Censura?
Em grande parte sim, mas não só. Também à própria Oposição e em particular ao PCP. Ao PCP, na altura dentro de uma política unitária (entre aspas), não lhe interessava uma História do Movimento Operário que incluía conflitos sociais. A História que se fazia era essencialmente a do liberalismo burguês (chamemos-lhe assim), da revolução liberal depois de 1820 e do pensamento republicano. Era a tradição considerada politicamente correcta na Oposição portuguesa. O meu livro e os de César Oliveira romperam com isso. Eu interessei-me pela História do Movimento Operário por razões que tinham muito a ver com a situação política na altura. Era uma maneira de falar de uma História que tinha sido ocultada. Comecei a escrever o meu primeiro livro aos 19 anos, no final dos anos 60. É um produto da década.
Que está na origem desta biografia de Cunhal?
O interesse vem daí, mas foi muito complicado de levar para a frente, porque a História do PCP sempre foi difícil de fazer. O PCP reagia com muita virulência à tentativa de estudar a sua História e isso estendeu-se praticamente até à década de 90. De modo que muitos dos meus colegas resolveram estudar assuntos mais pacíficos: a Ditadura, Salazar, o fascismo, as eleições do Estado Novo. E eu permaneci durante muito tempo, em rigor quase até hoje, isolado a escrever sobre a História do Movimento Comunista e do Movimento Operário. Sujeito sempre a uma dupla incompreensão: os comunistas entendiam que era um ataque ao PCP e faziam tudo para que esta História não se fizesse, e as pessoas mais à direita achavam bizarro alguém do PSD interessar-se por estas coisas. Esta é, por isso, uma obra sempre feita muito solitariamente.
Admiro a sageza na promoção do seu livro “Álvaro Cunhal, uma biografia política”. Para além das múltiplas acções de divulgação da eminente publicação, que a antecederam, até à cobertura mediática no lançamento, quer-me parecer que você não deixa este trabalho para mãos alheias. Depois, para que o livro não caia em esquecimento no escaparate das livrarias, lembrou-se de lhe dedicar um blog! Coisa interessante, esta, de aproveitar um blog para continuar a falar-se da obra (não apenas para você continuar a falar, mas para que outros falem…).
A subtileza do tema – a “biografia” dum homem cuja vida era um mistério – e a posição política do autor eram só por si garantias de êxito editorial. Mas o homem, ainda vivo, era avesso à devassa da sua vida privada e privilegiava a vida colectiva em detrimento da individual, que afinal fora moldada confundindo-se com a do partido que abraçara e que dirigia ia para mais de cinquenta anos. Daí a subtileza do subtítulo: uma biografia política. Assim sendo, o tema fundamental seria a vida política de Cunhal no PCP.
Ao longo dos milhares de páginas por que se estendem os três volumes publicados da sua “biografia política” de Álvaro Cunhal, é difícil descortinar alguma coerência entre o título e o conteúdo. Você aborda, com alguma ligeireza, os meandros da oposição democrática e da vida interna do PCP, assim como aspectos conhecidos da vida de Cunhal, mas a história “política”, das diversas posições políticas (ou da falta delas), continua por fazer.
A sensação que deixa transparecer, mais marcadamente neste terceiro volume, é a de que se entreteve a contar uma série de historietas, algumas pitorescas (no meio adverso da clandestinidade), baseadas em factos, é certo, mas nem por isso menos desprovidas de qualquer interesse para a história “política” do supostamente biografado ou do PCP.
A história “política” de Álvaro Cunhal, e a do próprio PCP, merecia mais factos que mostrassem a verdadeira dimensão do mito que o fascismo português deixou construir (à sua imagem e à do povo português): um pequeníssimo partido, que nalguns períodos se aproximou de uma seita de fanáticos desqualificados, com uma ideologia fluida, pouco sólida em termos teóricos ou de compreensão do marxismo-leninismo e apenas povoada dos estereótipos comunistas em termos organizativos e de ódio ao capitalismo, sem grande influência nas massas trabalhadoras e que nunca constituiu qualquer perigo para o regime (apesar da áurea de que o comunismo gozava nas épocas até agora abordadas).
O período que se segue é ainda interessante para a história “política” do supostamente biografado e do PCP. Espero, sinceramente, que no volume (ou volumes) em que o aborde você proceda à análise política que tem faltado nos já publicados. Se possível, fazendo-o com uma escrita mais cuidada, quanto ao estilo e às regras da pontuação.
Álvaro Cunhal também no meu blog.
Saiu a primeira parte do meu texto.
Mais partes serão publicadas nos próximos tempos.
Nuno Martins.