LYON DE CASTRO, PITEIRA SANTOS, A "LER" E O PCP

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Coloco em linha, para arquivo, os dois artigos que escrevi sob este título no Público.

Lyon de Castro, Piteira Santos, o “Ler” e o PCP (1)
Por JOSÉ PACHECO PEREIRA
Quinta-feira, 15 de Abril de 2004

Após a prisão de Álvaro Cunhal e de Militão Ribeiro em 1949, o PCP entra naquilo que mais tarde vem a ser descrito como um “desvio sectário” e que durou até 1955. A caracterização é branda: o PCP inicia um processo de implosão sobre si próprio, de purgas e expulsões em série e de isolamento político, abandonando a política “unitária” que tinha sido forjada desde 1943 no Munaf (Movimento Nacional Antifascista) e no MUD (Movimento de Unidade Democrática ).

O processo tem duas componentes causais: uma, a nova orientação do movimento comunista depois de 1947, com a “guerra fria” nascente, e que implicava um retorno a uma linha confrontacional entre comunistas e os seus antigos aliados da “frente popular”; outra, de carácter nacional, a repressão da PIDE contra o PCP, que o colocou quase no limite da desaparição.

Os homens-chave deste processo são Júlio Fogaça, José Gregório, Pires Jorge, Pedro Soares, mas a viragem tinha começado já no tempo de Cunhal e Militão Ribeiro. Fora do PCP, o homem-chave de toda esta história o arqui-inimigo “antipartido”, foi Fernando Piteira Santos. Sem ele e sem a sua acção, não se compreende o que se passou, porque é nele que o PCP vai concentrar a demarcação com aquilo a que chama a “acção antipartido”. O palco de todo este confronto político e ideológico é a “frente cultural”, a sua polarização faz-se à volta do jornal “Ler”, criado por Francisco Lyon de Castro, mas, na prática, dirigido e orientado por Piteira Santos.

No início da década de 50, Piteira tinha acabado de ser expulso do PCP, num processo cujos contornos formais são pouco conhecidos. Membro do partido desde a década de 30, fora o grande organizador do Bloco Académico Anti-Fascista (BAAF), organização frentista por onde passaram muitos dos membros da “nova geração” que tinha em Álvaro Cunhal um dos seus representantes e, em breve, um dos seus mentores. O estilo de Piteira é já bem patente na actuação do BAAF, com a tentativa de utilizar eventos culturais e personalidades da nossa literatura, como Gil Vicente, para um proselitismo político-cultural. As suas excepcionais qualidades de agregar pessoas e os seus extensos contactos e amizades vieram a ter um papel decisivo na reanimação do “Diabo”, e na colocação do jornal no centro da fase inicial da “reorganização do PCP”. Mais do que Cunhal, que ainda hesitava sobre quem apoiar, foi Piteira que o chamou a uma colaboração mais regular ao “Diabo” e lhe “encomendou” alguns famosos artigos em defesa do Pacto Germano-Soviético.

Com a estabilização da nova direcção do PCP depois da “reorganização”, por volta de 1943, Piteira assumiu importantes funções no comité central (CC) do PCP, estando à frente dos contactos do Munaf e com o aparelho militar do partido, acompanhando a evolução do golpismo oposicionista do “reviralho”.

Preso em 1945, com outros membros do CC, Piteira prestou declarações à polícia, como fizeram todos. Foram sancionados por isso duas vezes, a segunda das quais conhecendo o PCP os autos de perguntas integrais, mas, na maioria dos casos, essas sanções eram pouco importantes. Mais tarde, as declarações de Piteira foram contra ele usadas, de forma dúplice porque permaneceram no partido como funcionários membros, como Joaquim Campino, que tinham feito idênticas declarações. Era evidente que o ataque a Piteira tinha razões políticas, o combate às suas ideias frentistas, numa altura em que o PCP se fechava sobre si próprio. O partido iniciou então uma duríssima campanha contra Piteira, privada e pública, apontando-o como “traidor”.

Foi neste contexto que Francisco Lyon de Castro, antigo membro do PCP nos anos 30 e expulso no final da década, deu emprego a Piteira Santos na sua nova editora Europa-América. O projecto Europa-América era ele próprio fruto de um activismo político do seu fundador. O nome da editora traduzia a aliança gerada pela guerra e pela esperança de um novo mundo que a vitória contra o nazismo abria. Ao convidar Piteira Santos para dirigir a editora, Lyon de Castro sabia que isso iria agravar as tensões com o partido. Na mesma altura, Lyon de Castro e Piteira Santos, assim como Mário Soares foram condenados como “titistas”. Este era aliás o nome do filho de Lyon de Castro, Tito.

Quando Lyon de Castro e Piteira tomam a iniciativa de criar um novo jornal, utilizando o artifício que permitia que os boletins bibliográficos não fossem à censura, e a existência do título “Ler” na propriedade do irmão de Lyon de Castro, o PCP levou ao paroxismo a sua campanha e o PCP reagiu com uma enorme violência verbal à criação do “Ler”. O partido via o jornal como uma espécie de iniciativa paralela de criar um outro partido comunista ou de servir de instrumento organizado e de influência contra a direcção do PCP. Se tivermos em conta o que acontecera com o “Diabo”, em 1939-40, o receio não era tão paranóico como hoje parece. Piteira sabia o que queria e o modo como orientou o “Ler” mostra uma clara intencionalidade política contra a então direcção partidária na clandestinidade.LYON DE CASTRO, PITEIRA SANTOS, O “LER” E O PCP (2)
Por JOSÉ PACHECO PEREIRA
Quinta-feira, 22 de Abril de 2004

O isolamento político do PCP, de 1950 a 1955, foi total. Rompendo desde 1949 com a “unidade”, depois da campanha de Norton de Matos, o PCP tinha apenas um porta voz “legal”, o Movimento Nacional Democrático (MND) e uma organização da juventude, o Movimento de Unidade Democrática Juvenil (MUDJ). O MND não conseguiu nunca ultrapassar a área de influência do PCP. O MUDJ era muito activo nas escolas, mas não ultrapassava a sua função de dar “massa de manobra” às acções para-legais do partido. É também nesta altura que se consolida um grupo de “companheiros da estrada” do PCP, activistas da oposição, simpatizantes do PCP, que aceitavam a sua direcção e que actuavam nos “movimentos” que o partido criava. Entre esses “movimentos”, o mais significativo era o da “paz”, mas também a sua organização dependia directamente do MND e do PCP. Os “companheiros da estrada”, os mais relevantes dos quais eram Maria Lamas e Rui Luís Gomes, eram muitas vezes mais sectários e ortodoxos do que os comunistas.

Neste ambiente, e no momento em que a linha partidária era a de maior sectarismo, a orientação do “Ler” contrapunha-se à do partido. Piteira Santos abria o “Ler” até às fronteiras dos escritores do regime, defendendo a mais ampla aliança possível, na tradição “frentista” dos anos 40. Através dos seus conteúdos, o “Ler” escapou também ao neo-realismo mais ortodoxo, em áreas como a pintura, abandonando o cânone figurativo. Na sua curta existência, terminada pela censura, o jornal demonstrava como, na altura mais dura da guerra fria, era possível uma convivência cultural, que alargava o campo da oposição. O “Ler” não era um jornal do regime como o PCP chegou a dizer, mas um jornal da oposição em que colaboravam intelectuais próximos do regime. Se alguém saía reforçado era sempre a oposição.

O secretariado do PCP responde ao “Ler” com uma série de pressões públicas e privadas, para o isolar e impedir a todo o custo que os intelectuais comunistas nele colaborassem. De imediato, aceitaram os ditames partidários Maria Lamas e António José Saraiva, que iria ser com Óscar Lopes, instrumental na tentativa de “pôr na ordem” a revista cultural “Vértice”, outra frente do conflito. Mas Mário Dionísio, José João Cochofel e Lopes Graça continuaram a escrever no “Ler”, desafiando o partido. Esta atitude motivou uma série de cartas formais, enviadas em nome do PCP, exigindo-lhes o abandono imediato da colaboração no “Ler”. Manuel Campos Lima (em relação a Dionísio e Cochofel) e Fogaça (para Lopes Graça) assinavam essas cartas dizendo-lhes, em substância, que escrever no “Ler” era não só incompatível com a sua condição de comunistas como de “intelectuais progressistas”. Nenhum aceitou a chantagem e todos foram consequentemente afastados do partido, embora haja dúvidas sobre se existiram actos formais de expulsão, ou apenas cortes de relações partidárias.

A purga de escritores, que atingiu por outros motivos, igualmente Manuel da Fonseca, mereceu o apoio implícito de Cunhal. O seu texto, enviado da cadeia, com o pseudónimo de “António Vale”, e parcialmente publicado na “Vértice”, era escrito contra Mário Dionísio e Lopes Graça. Cunhal revela-se bastante informado do que se passa, por isso o seu texto só pode significar o apoio às medidas da direcção partidária. Mais tarde, Cunhal veio a fazer uma autocrítica nos textos que publicou no seu livro sobre estética, arte e sociedade, depois do 25 de Abril, do seu dogmatísmo estético e político.

Os homens envolvidos neste episódio, Lyon de Castro e Piteira Santos, conhecerão, no futuro, momentos de aproximação e afastamento do partido, mas nunca mais voltarão ao PCP. Cochofel afastou-se e Mário Dionísio, mesmo repetidamente instado pela direcção para voltar ao partido, inclusive por Cunhal, nunca mais regressou. O mesmo não aconteceu com Lopes Graça, que regressou ao partido. Dos que defendiam a linha sectária do PCP, Manuel Campos Lima morreu comunista e Óscar Lopes permanece no partido. Ironicamente, António José Saraiva acabou ele próprio por sair do partido em conflito, nos anos sessenta, merecendo uma condenação pública do PCP e de Cunhal às suas ideias.

Este episódio político-cultural, do início dos anos cinquenta, sobre o qual haverá mais detalhes inéditos no terceiro volume da biografia de Cunhal que estou a preparar, mostra como na história da oposição portuguesa existe mais complexidade e variedade do que se pensa. E isso deve-se a homens como Lyon de Castro, na sua incessante procura do lugar de dissidência (como depois do 25 de Abril fez, publicando os livros de ruptura de Vital Moreira e Zita Seabra, e as publicações soviéticas da “perestroika”); como Piteira Santos, na sua incessante procura de uma “unidade”, sempre mais vasta do que o PCP desejava; como Mário Dionísio, incessantemente fiel ao seu “pathos” de criador, e à liberdade intelectual. Para estes homens, o “Ler”, foi uma afirmação de coragem.

2 comments

  1. Pinto de Sá

    Muito intressante, caro Pacheco Pereira!
    Aguardo ansiosamente o seu 3º volume!…
    Uma das coisas que neste momento me desperta a curiosidade é como se situava Francisco Martins Rodrigues nesta época, sabido que é como a posição do CM-LP foi a de considerar o período de José Gregório, ou seja 1949-1955, como uma época de predomínio da “linha justa” no PCP…

  2. Pingback: Tomar

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