“EVOCAÇÃO DE MESTRE CABANAS
Todos os barreirenses o tratavam, com a maior das deferências, pelo merecido título de Mestre Cabanas.
Poisava no Café Tico Tico, bem no centro do Barreiro, entre o Mercado e o Parque. Sentava-se numa mesa de canto, silencioso, puxava do canivete adaptado à função e, num pedaço de madeira pré-preparado, esculpia, horas a fio, extraordinárias obras de arte (rostos e paisagens) que, depois, valiam por si e como suporte para se produzirem e reproduzirem serigrafias. Nem eu, nem ninguém, se atrevia a incomodar o Mestre Cabanas enquanto ele trabalhava. E nem pensar alguém atrever-se a fixá-lo ou espreitar-lhe a obra enquanto o canivete estivesse a dar os seus geniais cortes. Quem quisesse cumprimentá-lo ou dar-lhe dois dedos de conversa, tinha sempre o cuidado de esperar que o Mestre tirasse os óculos e poisasse os apetrechos, dando o sinal de que estava em intervalo entre dois impulsos criativos.
Eu era um garoto armado em adolescente e o Mestre Cabanas já era um velho. Ele não era barreirense de gema, apenas adoptivo (como eu). Veio de Vila Real de Santo António e ficou-se pelo Barreiro onde a linha ferroviária acabava vinda do extremo do Algarve. Talvez, devido à comunhão das raízes, ele tenha dedicado a António Aleixo um extraordinário rosto esculpido em madeira e que se tornou a mais célebre imagem do poeta popular. Seco de carnes, vestia sempre de fato escuro, impecável e discreto no aspecto, calva ampla e punha os óculos na ponta do nariz quando se concentrava na obra.
Mestre Cabanas era um antifascista compulsivo. Assinava tudo que era manifesto da oposição, participava em todas as eleições e presidia a todas as mesas das sessões da oposição que se conseguiram realizar no Barreiro. Volta e meia, a Pide levava-o para a António Maria Cardoso e depositava-o uns tempos no Aljube ou em Caxias. Quando faltava no Café Tico Tico, todo o mundo sabia onde o Mestre tinha ido parar. Depois, ele voltava, discreto e silencioso, para o seu trabalho de artista, sem alardes nem prosápias.
Era republicano, laico e socialista democrático. Já muito velho, tornou-se numa figura emblemática do PS a seguir ao 25 de Abril. Mário Soares prestou-lhe culto enquanto pode. Conseguiu respirar a liberdade sem a poluição da Pide. Pouco tempo depois, deu repouso às suas mãos de artista genial e deixou-nos.
Lembro Mestre Cabanas cada vez que reparo que moro numa Rua de António Aleixo.”
bem hajam
por se lembrarem, por trabalharem e dignificarem a obra, por não deixarem esquecer