Avelino Pereira colocou-me a seguinte questão :
Li a sua página sobre os estudos sobre o comunismo, e gostaria de aproveitar a disponibilidade para perguntas para suscitar uma dúvida que me assolou aquando da leitura do 2º volume da sua biografia de Alvaro Cunhal. Refere-se, no livro, a intervenção do Dr. Palma Carlos como advogado dos comunistas que eram acusados pelo regime. Como advogado dos arguidos, com intervenção no processo, presumo. Mas alude-se ainda que o Dr. Palma Carlos comunicava ao Dr. Alvaro Cunhal o que do autos ressaltava sobre o comportamento dos arguidos durante interrogatório. Parece por isso, que por um lado, o Dr. Palma Carlos assumia a defesa de arguidos, e que, ao mesmo tempo, denunciava ao Partido o comportamento desconforme com as suas normas. Ora, isto seria um comportamento incompreensível da parte de um advogado. Será que poderia esclarecer como se processavam as relações entre o Partido, e os advogados que obtinha para a defesa dos seus militantes, nomeadamente no que se refere aos deveres de sigilo destes ?
Enviei-lhe em e-mail a seguinte resposta :
Os advogados do PCP que acompanhavam os processos políticos eram em primeiro lugar militantes do PCP e só depois advogados no sentido formal do termo . Isso tem sentido na época e pareceria bizarro a qualquer membro da oposição que fosse de outro modo . O mesmo procedimento tinham os advogados da oposição que não eram do PCP mas que divulgavam pelos canais que possuíam as informações que consideravam relevantes no âmbito da luta política em curso . O que se passava é que ninguém considerava legítimo todo o processo da “justiça” do regime , que era completamente iníquio , com declarações obtidas sob tortura e procedimentos legais inaceitáveis numa democracia .
Os Tribunais Plenários , que substituíram os Tribunais Militares , no julgamento dos opositores ao regime , viviam das declarações obtidas sob tortura e dos testemunhos dos PIDEs que a praticavam . Conhecem-se cenas absurdas ocorridas em pleno julgamento , que mostravam o grau de politização dos juízes , que actuavam como funcionários do regime .
Avelino Pereira autorizou-me a divulgação desta correspondência e acrescentou o seguinte :
A questão no entanto, prende-se não propriamente com a justeza do processo, cujas iniquidades são conhecidas, mas antes como se colocariam os advogados, face aos interesses em jogo no processo penal. O Dr. Palma Carlos era, ao que sei, tido como um excelente advogado, com reputação intocável. Como poderia então acusar os seus clientes, de comportamentos impróprios no interrogatório ? Como poderiam estes aceitar ser defendidos por alguem que sabiam iria transmitir os seus ” pecados ” ( todo o homem tem pecados ) aos chefes do Partido ? Isto, em boa verdade, nada tem a ver com a justeza do processo. Nos dias de hoje, sobretudo para alguem que não viveu os tempos anteriores à revolução, é tudo dificilmente compreensível
Comentário
Eu próprio tive ocasião de discutir esta questão com o o dr. Palma Carlos em entrevistas que lhe fiz nos últimos dois anos antes de falecer . O conhecimento dos autos de perguntas era um elemento crucial da informação que o PCP necessitava para julgar o comportamento dos seus militantes e identificar as quebras de segurança que poderiam afectar a sua organização . Por isso , essas informações circulavam , insisto , não apenas vindas dos advogados que eram comunistas , mas em todos os advogados da oposição que defendiam os presos polítcos . O pressuposto de legitimidade dessa prática vinha de se considerar que quando um preso atravessasse o limiar do que era considerado traição uma colaboração sistemática e voluntária com a PIDE para além da fraqueza das declarações sob tortura nenhum advogado da oposição defenderia esse preso.
Isto não significa que não tenha havido casos em que determinadas declarações de há muito conhecidas , tenham sido divulgadas posteriormente no âmbito de ataques políticos a personalidades que o PCP queria marginalizar na oposição , depois de terem sido expulsas do partido . Foi o caso de Fernando Piteira Santos , cujas declarações de 1945 que tinham dado origem a uma sanção leve em 1946 , foram depois utilizadas na intensa campanha que o PCP conduziu contra ele depois de 1949-1950 . O partido tinha cópias dos autos de perguntas que divulgou selectivamente .
Acresce que para muitos presos os advogados não eram vistos como advogados no sentido de que a sua intervenção iria ter qualquer influência na defesa . A ideia de que houvesse defesa no sentido estritamente jurídico , particularmente nos casos de funcionários , era-lhes de todo alheia . A verdadeira defesa era a que o próprio fazia na tradição comunista , com um discurso de teor político , do género dos publicados pelo PCP no volume A Defesa Acusa . O advogado era muitas vezes o camarada político ou o correlegionário de luta , fosse comunista ou oposicionista , e o elo que o preso tinha com o partido .
Gil Moreira dos Santos – juiz do Tribunal Plenário do Porto referido em
http://www.instituto-camoes.pt/bases/25abril/reprtribplenarios.htm
será o mesmo que hoje é membro da Comissão dos Direitos do Homem da Ordem dos Advogados?
É…
A. Lopes